sexta-feira, 3 de agosto de 2018

o frio é psicológico, mas é bom pôr uma blusa

Sartor Resartus [1834] 

Romance de Thomas Carlyle que é uma enorme resenha sobre um livro maior ainda de um filósofo alemão inventado que escreveu uma filosofia das roupas. Sátira fina a uma filosofia especulativa da época, talvez principalmente a Hegel e seus continuadores. Aqui o oitavo capítulo, "O Mundo Sem Roupas":


Se, na porção Descritivo-Histórica desse Volume, Teufelsdröckh, meramente discutindo o Werden (Origem e sucessiva Melhoria) das Roupas, impressionou muitos leitores, muito mais ele fará na porção Especulativo-Filosófica, que trata da Wirken delas, ou Influências. Foi primeiro aqui que o Editor sentiu a pressão de sua tarefa; pois aqui propriamente começa a mais elevada e nova Filosofia das Roupas: uma região todinha não provada, quase inconcebível, ou caos; aventurando-se nela, quão difícil, e todavia quão indizivelmente importante que é saber qual curso, de investigação e conquista, é o verdadeiro; onde a pisada é substância firme e irá nos suportar, onde é oco, ou mera névoa, que pode nos tragar! Teufelsdröckh se lança a nada menos que expôr as morais, políticas e até religiosas Influências das Roupas; ele se lança a tornar manifesta, em suas milidobradas acepções, essa grande Proposição de que os interesses terrenos do Homem “estão todos enganchados e abotoados juntos, e sustentados, por Roupas”. Ele diz isso com variadas palavras, “A Sociedade está fundada na Roupagem”; e de novo, “A Sociedade navega através da Infinitude de Roupa, como num Manto de Fausto, ou então como no Lençol de máculas e imáculas bestas no Sonho do Apóstolo; e sem esse Lençol e esse Manto afundaria em termináveis profundezas, ou se poria em limbos inanes, e em ambos os casos não seria.”

Por quais correntes ou, de fato, por quais tecidos infinitamente complexidados de Meditação esse grande Teorema é aqui desdobrado, e inumeráveis Corolários práticos são esboçados a partir daí, seria talvez de uma louca ambição tentar exibi-los. O método do nosso Professor não é, em todo caso, o da comum Lógica escolar, onde todas as verdades estão postas em fila, cada uma segurando as franjas da outra; mas, na melhor das hipóteses, aquele da Razão prática, procedendo por largas Intuições sobre grupos e reinos sistemáticos inteiros; por onde, podemos dizer, uma nobre complexidade, quase a da Natureza, reina em sua Filosofia, ou espiritual Retrato da Natureza: um poderoso labirinto, e porém, como sussurros de fé, não sem um plano. Sim, reclamamos acima que certa complexidade ignóbil, que temos de chamar de confusão, era também discernível. Amiúde, também, temos de exclamar: Que dos Céus esses mesmos Documentos Biográficos tenham vindo! Pois parece que a demonstração muito reside na individualidade do Autor; como se fosse não Argumento o que o tivesse ensinado, mas Experiência. Presentemente é apenas em piscadelas locais, e por significantes fragmentos, amiúde catados em assaz largos intervalos do Volume original, e cuidadosamente colacionados, que esperamos repartir algum bosquejo ou prenúncio dessa Doutrina. Leitores de qualquer inteligência estão mais do que convidados a nos obsequiar com sua mais concentrada atenção: que eles e elas, após intensa consideração, e só até lá, se pronunciarem. – Será que na beirada derradeira de nosso real horizonte não há de lençol nem o vulto de Terra; uma promessa de novas Ilhas Afortunadas, talvez Américas totalmente indiscobertas, para tais e tais que tenham velas para navegar avante? – Como exórdio ao todo, aqui está a seguinte longa citação:

«Aos homens de giro especulativo», escreve Teufelsdröckh, «acometem temporadas, meditativas, doces e, todavia, horríveis horas, quando vos colocais em admiração e medo aquela questão irrespondível: Quem sou eu; a coisa capaz de dizer “eu” (das Wesen das sich Ich nennt)? O mundo, com seu ruidoso tráfico, se retira à distância; e através dos papéis pendurados, e das paredes de pedra, e dos tecidos espessamente dobrados do Comércio e da Polidez, e de todos os integumentos com ou sem vida (da Sociedade e de um Corpo), junto dos quais senta-se rodeada vossa Existência, – a vista alcança adentro do vazio Profundo e fica-se só com o Universo, e silenciosamente se comunga com ele, como uma misteriosa Presença com outra.

«Quem sou eu; o que é esse eu? Uma Voz, um Movimento, uma Aparição; – alguma Idéia incorporada, visualizada na Mente Eterna? Cogito ergo sum. Ai, pobre Cogitador, isso nos leva a muito pouco. É bem verdade, eu sou; e anteriormente não era: mas Donde? Como? Aonde? A resposta reside por aí, escrita em todas as cores e movimentos, proferida em todos os tons de jubileu e pranto, na milifigurada, milivozeada, harmoniosa Natureza: mas onde está o olho e ouvido sagazes aos quais o Apocalipse por Deus escrito concederá significação articulada? Sentamo-nos como numa Fantasmagoria sem-fronteiras, uma Gruta de Sonhos; sem-fronteiras porque a mais desfalecida estrela, o mais remoto século, não reside nem mesmo perto da beira disso: sons e visões multi-coloridas meneiam em volta de nossos sentidos; mas Ele, o Indormitante, cuja obra são ambos o Sonho e o Sonhador, não vemos; exceto em raros momentos semi-acordados, mal suspeitamos. A Criação, alguém diz, reside diante de nós, como um glorioso Arco-Íris; mas o Sol que a fez reside atrás de nós, de nós oculto. Então, nesse Sonho estranho, como nos firmamos em sombras como se substâncias fossem; e dormimos o mais profundo imaginando-nos bem acordados! Quais dos seus Sistemas Filosóficos não passa de um teorema sonhado; um enredado quociente, confiantemente anunciado, onde divisor e dividendo são ambos desconhecidos? Todas as suas Guerras nacionais, com seus Recuos de Moscou, e sanguinárias Revoluções plenas de ódio, que é isto senão o Sonambulismo de agitados Dorminhocos? Este Sonhar, este Sonambulismo é o que na Terra chamamos de Vida; onde a maioria vaga, indubitavelmente, como se soubesse dizer a mão direita da esquerda; todavia sábios são apenas os que sabem que nada sabem.

«Pena que até agora toda Metafísica provou ser tão inexpressivamente improdutiva! O segredo do Ser do Homem continua igual a um segredo de Esfinge: um enigma que ele não pode desvendar; e nessa ignorância ele padece da morte, do pior tipo de morte, uma espiritual. O que são seus Axiomas, e Categorias, e Sistemas, e Aforismas? Palavras, palavras. Elevados Castelos-no-Ar são sagazmente construídos de Palavras, as Palavras outrossim bem assentadas em Morteiros-lógicos; onde, no entanto, Conhecimento algum se alojará. O todo é maior que a parte: quão excessivamente verdadeiro! A Natureza abomina o vácuo: quão excessivamente falso e calunioso! E de novo, Nada pode agir senão onde está: com todo meu coração; só que, onde isso está? Não seja escravo de Palavras: não está o Distante, o Desfalecido, enquanto o amo, o anseio e o lamento, Aqui, no sentido genuíno, verdadeiramente como o próprio chão em que me levanto? Mas esse mesmo onde, com seu irmão quando, são desde o início as cores mestras de nossa Gruta do Sonho; ou então, a Tela (seu urdume e sua trama) onde estão pintados todos os nossos Sonhos e Visões de Vida. Contudo, uma mais profunda meditação não ensinou a alguns, de cada clima e idade, que o onde e o quando, tão misteriosamente inseparáveis de todos os nossos pensamentos, são apenas terrestres adesões superficiais ao pensamento; que o Vidente pode discerni-las de onde se armam lá dos celestiais Todo-Onde [Everywhere] e Sempre: não conceberam todas as nações os seus Deuses como Onipresentes e Eternos; existindo num Aqui universal, um sempilongevo Agora? Pensai bem, também achareis que o Espaço é apenas um modo do nosso Sentido humano, e o mesmo com o Tempo: nós somos – não sabemos o quê; – fagulhas luzentes flutuando no éter da Deidade!

«De tal modo que este Mundo tão aparentemente sólido, afinal, fôsse só uma imagem airada, nosso Mim a única realidade; e a Natureza, com sua milidobrável produção e destruição, só o reflexo de nossa Força interiorizada, a “fantasia do nosso Sonho”; ou aquilo que o Espírito-Terra, no Fausto, nomeia de vivo Ornamento visível de Deus: –

“Nas enchentes do Ser, nos temporais da Ação,
Caminho e trabalho, acima, abaixo,
Trabalho e teço, ininfindável moção!
Nascimento e Morte,
Um oceano infinito;
Um apossar-se e dar-se
Do fogo do Viver:
É assim que eu, do bramente Tear do Tempo, dobro
E teço pra Deus o Ornamento pelo qual O vedes.”

Dos vinte milhões que já leram e arengaram esse trovoesco discurso do Erdgeist [Espírito da Terra], estão ainda aí, entre nós, vinte unidades que aprenderam o significado disso tudo?

«Foi num humor desses, em que baleado e exausto com tais elevadas especulações, que pela prima vez me veio a questão das Roupas. Bem estranho, e é o que me ataca, esse mesmo fato de existirem Alfaiates e Alfaiatados. O Cavalo que cavalgo tem toda uma própria sobre-costura: dispa-o de suas cilhas e fraldas e extravagantes penduricalhos que eu apertei em volta dele, e a nobre criatura é sua própria costureira e tecedora e fiandeira; mais, ele é seu próprio sapateiro, joalheiro, chapeleiro; livre ele trota pelos vales, com uma perene casaca cortesã à-prova-de-chuva em seu corpo; onde calor e facilidade de ajuste atingiram a perfeição; mais, as gracezas também foram consideradas, e as franjas e fímbrias, com alegre variedade de cor, finamente apensas, e sempre no lugar certo, não são faltantes. Enquanto eu – ó Céus! – me cobri por cima com tosa morta de ovelha, com casca de vegetais, as entranhas de vermes, couros de bois ou focas, o feltro de bestas peludas; e ando por aí feito um Biombo-de-Frangalhos móvel, entulhado de trapos e farrapos juntados do Açougue da Natureza, onde teriam apodrecido, para em mim apodrecerem mais lentamente! Dia após dia, devo novamente me cobrir; dia após dia, a desprezível coberta deve perder um pouco mais da película de sua espessura; algumas das películas, rasgadas pelo roçar e pelo usar, precisam ser varridas pra Lixeira, pra dentro do Monturo de Esterco; até que o todo seja gradualmente varrido pra lá, e eu, fazedor de pó, Moedo-de-Ratos patenteado, consiga novo material para destriçar. Ó mais sutil dos brutos! vil! vil demais! E não tenho também eu uma compacta pele toda fechadinha, por mais branca e encardida? Sou eu, então, uma massa remendada com trapos de alfaiate e sapateiro, sarrafaçal; ou uma pequena Figura homogênea, articulada com firmeza, automática, melhor, viva?

«Bem estranho como essas criaturas do tipo humano fecham os olhos a fatos evidentes; e pela mera inércia do Esquecimento e Estupidez, vivem numa boa em meio a Maravilhas e Terrores. Mas de fato o homem é, e sempre foi, um cabeção e broncudo; pronto demais para sentir e digerir do que pensar e ponderar. O Preconceito, que ele finge odiar, é seu legislador absoluto; o mero uso-e-costume o leva a toda parte pelo nariz; aí deixe só um Nascer do Sol, deixe uma Criação do Mundo acontecer pela segunda vez, e ele pára de ser maravilhoso, de ser digno de reparo e notável. Talvez nem mesmo uma só vez ocorra ao nosso bípede ordinário, de qualquer país ou geração, seja ele um Príncipe em ouro amantado ou um Camponês de gibão acastanhado, que suas Vestimentas e seu Si não são uma coisa só e indivisível; que ele está nu, sem vestimentas, até que compre ou roube algumas, premeditadamente as costurando e abotoando.

«De minha parte, estas considerações sobre nossas Roupas-cobertas, e como alcançando interiores do âmago de nosso coração isso nos alfaiata e desmoraliza, encheram-me de um certo horror por mim e pela humanidade; quase quando como se está de frente àquelas Vacas Holandesas, que vedes, na estação úmida, pastando deliberadamente com suas casacas e saiotes (de aniagem despida), nas pradarias de Gouda. Entretanto, há algo de grandioso no momento em que um homem pela primeira vez se despe de fortuitos embrulhos; e de fato vê que está nu e que é, como quer Swift, “um animal de escanchar forqueado com pernas arqueadas”; mas também um Espírito, e improferível Mistério dos Mistérios.»

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Nem Gandhi imaginou

Eis aqui o episódio em que Henry Miller ciceroneia um discípulo de Gandhi por Paris, primo dum amigo, e por um pedido expresso do discíspulo, acompanhando-o pelos cafés de Paris, pelas praças e sobretudo pelas prostitutas. Deve-se observar que os discípulos de Gandhi contraíam voto de celibato. E o que significa para um tal discípulo estar de viagem por Paris porque lá mora um primo, e logo conhecer um tipo como Henry Miller, eu mal consigo imaginar. Mas em certa altura daquela noite, cada um deles acompanhados de uma mulher em quartos diferentes, o indiano aproveita uma deixa e corre a Miller com uma dúvida dilacerante: “Onde faço minhas necessidades? Nunca vi um banheiro assim!” Imagina-se que na Índia do início do séc. XX poucos tinham a ideia de alguns apetrechos, para os ocidentais tão banais, como a privada ou o bidê. Miller diz a ele, com tranquila naturalidade: “Faz no bidê mesmo.” Minutos depois, a prostituta com quem o indiano se entretinha dá nos gritos: “Aaa! ele é um monstro, esse homem é um monstro”, e então Miller desengata novamente:

 «No ar há uma espécie de pandemônio subjugado, uma nota de violência reprimida, como se a explosão aguardada requeresse o advento de algum detalhe inteiramente diminuto, algo microscópico porém absolutamente imprevisível, completamente inesperado. Nessa espécie de semidevaneio que permite com que a gente participe de um acontecimento mantendo-se todavia à distância, o detalhezinho que estava faltando se pôs obscuramente porém insistentemente a coagular, a assumir uma forma aberrante, cristalina, como a neve que acumula no fio das vidraças. E como aqueles padrões de neve, que parecem tão bizarros, tão inteiramente livres e fantásticos em desenho, mas que no entanto são determinados pelas mais rígidas leis, assim também esta sensação que começara a ganhar forma dentro de mim parecia estar sendo obediente a leis inelutáveis. Todo meu ser estava respondendo aos ditados de uma ambiência que nunca antes ele havia experimentado; aquilo que eu chamava de mim mesmo parecia estar se contraindo, condensando, arredando das cediças, costumeiras fronteiras da carne cujo perímetro conhecia apenas as modulações das terminações nervosas.

  «E quanto mais substancial, quanto mais sólido devinha o núcleo de mim, mais delicada e extravagante se mostrava a rente e palpável realidade da qual eu estava sendo espremido. À medida que eu ficava mais e mais metálico, à mesma medida a cena diante de meus olhos ficou inflada. O estado de tensão estava tão finamente desenhado agora que a introdução de uma única partícula forânea, mesmo uma partícula microscópica, como estou dizendo, teria espedaçado tudo. Na fração de um segundo, quiçá, eu experimentei aquela total clareza que ao epilético, dizem, é dado conhecer. Naquele momento perdi completamente a ilusão do tempo e espaço: o mundo desenrolou seu drama simultaneamente ao longo do meridiano que não tem eixo algum. Nesse disparo zastrante de eternidade eu senti que tudo estava justificado, supremamente justificado; senti as guerras dentro de mim que haviam deixado o casco e o destroço; senti os crimes que fervilhavam acá emergindo amanhã em ruidoso alarido; senti a miséria que vai gotejando em guardanapos sujos. No meridiano do tempo não há injustiça; só o que há é a poesia do movimento criando a ilusão da verdade e do drama. Se a gente num momento qualquer dá de cara com o absoluto, aquela grande simpatia que fazem homens como Gautama e Jesus parecerem divinos se enregela; o monstruoso não é que homens tenham criado rosas dessa pilha de esterco, mas que eles, por uma ou outra razão, tenham de querer rosas. Por uma ou outra razão o homem anseia pelo milagre, e para cumpri-lo ele vadeia em meio ao sangue. Ele vai se devassar com idéias, vai reduzir-se a uma sombra se por apenas um segundo de sua vida puder fechar seus olhos pra hediondez da realidade. Tudo é suportado – desgraça, humilhação, pobreza, guerra, crime, ennui – na crença de que algo da noite pro dia ocorrerá, um milagre, que tornará a vida tolerável. E enquanto isso um relógio corre cá dentro e não há mão que possa alcançá-lo e desligá-lo. Enquanto isso tem alguém comendo o pão da vida e bebendo o vinho, uma suja e gorda barata de padre que se esconde beberrão na adega, enquanto lá encima à luz das ruas um anfitrião fantasma toca os lábios e o sangue é descorado como água. E pra fora do infindável tormento e da miséria não desponta nenhum milagre, nem mesmo o vestígio microscópico de um alívio. Só idéias, pálidas, atenuadas idéias que precisam engordar pra serem abatidas; idéias que despontam igual bile, igual as tripas de um porco quando a carcaça é destroçada.
E aí eu penso o milagre que seria se esse milagre que o homem eternamente aguarda calhasse de ser nada mais do que esses dois enormes troços que o fiel discípulo largou no bidet. E se no último momento, quando estiver posta a mesa do banquete e os címbalos se chocarem, houver de aparecer subitamente, e sem nenhum aviso, uma travessa prateada em que até o cego poderia ver que não há nada mais, e nada menos, do que dois enormes toletes de merda. Isso eu acredito que seria mais milagroso que qualquer coisa que o homem ansiou. Ia ser milagroso porque insonhado. Ia ser mais milagroso do que o mais selvagem sonho porque qualquer um poderia imaginar a possibilidade mas ninguém nunca o fez, e provavelmente ninguém nunca o fará de novo.

  «De algum modo a sacada de que nada havia pra se esperançar teve um efeito salutar sobre mim. Por semanas e meses, na verdade por anos, minha vida toda estive contando com que algo acontecesse, algum extrínseco acontecimento que iria alterar minha vida, e agora de chofre, inspirado pela absoluta desesperança que as coisas todas dão, senti-me aliviado, senti como se um grande fardo se tivesse erguido dos meus ombros. Ao pôr-do-sol parti a companhia do jovem Hindu, depois de filar uns francos dele, o suficiente prum quarto. Caminhando rumo a Montparnasse decidi lançar-me à deriva co'a maré, e não dar nem uma ínfima resistência ao destino, não importando em que forma ele se apresentasse. Nada que até então havia acontecido comigo tinha sido suficiente pra me destruir; nada exceto minhas ilusões havia sido destruído. Eu mesmo estava intacto. O mundo estava intacto. Amanhã pode haver uma revolução, uma praga, um terremoto; amanhã pode não ter sobrado uma única alma a quem se voltar por simpatia, por ajuda, por fé. Parecia-me que a grande calamidade já havia se manifestado, que eu não poderia ter estado mais verdadeiramente só do que naquele exato momento. Resolvi na minha mente que eu não me apegaria a nada, que não iria esperar por nada, que doravante viveria como um animal, fera predadora, um bucaneiro, um saqueador. Mesmo que fôsse declarada guerra, e meu lote fôsse estar nela, eu pegaria a baioneta e afundá-la-ia, afundaria até o cabo. E se o estupro estivesse na ordem do dia então estuprar eu iria, mas com uma vingança. Naquele exato momento, no quieto crepúsculo de um novo dia, não estava a terra baqueada com crime e aflição? Houve sequer um simples elemento da natureza humana que tenha sido alterado, vitalmente, fundamentalmente alterado, pela marcha incessante da história? Por aquilo que ele chama de melhor parte da sua natureza, o homem foi traído, isso é tudo. Nos extremos limites do seu ser espiritual o homem se encontra novamente nu como um selvagem. Quando encontra Deus, por assim dizer, ele já foi esburgado: é um esqueleto. A gente tem que se encafurnar de novo na vida a mó de envergar um pouco de carne. A palavra tem que virar carne; a alma tem sede. Seja qual for a migalha que eu estiver fixando, nela vou me atirar e devorar. Se das coisas viver é o sumo, então viverei, mesmo que tiver de devir canibal. Outrora eu vinha tentando salvar meu precioso couro, tentando salvar os poucos pedaços de carne que escondem meus ossos. Isso já deu. Atingi os limites da pertinácia. Minhas costas voltadas pra parede; não posso mais recuar. A se fiar na história estou morto. Se algo existir par além terei que voltar quicando. Achei Deus, mas ele é insuficiente. Só espiritualmente é que estou morto. Fisicamente eu estou é vivo. Moralmente sou livre. O mundo de que parti é um zoológico. O ocaso quebra num mundo novo, um mundo selva em que espíritos mirrados zanzam com presas afiadas. Se eu sou uma hiena é uma faminta e mirrada: avante que eu vou engordar.» 

(Trópico de câncer, New York, Grove Press, pp. 95-99)

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Ó, retorqui a conduta que renuncia à arte, vós que estais aqui pela sincera convicção de que não há saída livre, salvo a criação afetada pelo caos, num gesto de ordem[4].

[4] Conclusão de O que é a filosofia?, Deleuze & Guattari, 1.991.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

feições de um combate

P R E Â M B U L O






Salamaleque.

Tudo que aqui é dito, não é de dominio publico - pois tal noção é absurda ; não é de direito autoral, considerando os pesares jurídicos dest'outra noção ; tampouco age em favor do autor, já que as palavras aqui a serem ditas, quando questionadas em reprovação, ou mesmo em horror, de um esgar sarcástico fulminante - "Como dizer, se eu nada escuto!?" -, escorregam e deixam que se perceba o quão metafóricas são : em verdade, vos digo que escrevi ; mas devo avisar-vos que o dizer precede tudo. Daí para o ouvir-dizer são passos mínguos, e as ocorrências dessa atitude total de vida : ou seja, o dizer o que a si foi dito ; elas culminam no ápice de seu próprio acontecimento, que é ao mesmo tempo o deslizar contemporâneo da derrocada. Exatamente! é isso o que são, as palavras : cargas-clímax de uma não-perenidade, de um acontecimento tão universal quanto sofredor da singularidade pontual - uma ponta-de-lança... e minha digressão doravante é comprida.

Eu me lançarei às liras, pois delas um mavioso canto soava, e com ele foi possível dizer coisas de que se possuía para que fossem ditas : Arquíloco (cuja denominação latina em nada perde para o khi grego,
a r q u i l o c u s.).


« ἐν δορὶ μέν μοι μᾶζα μεμαγμένη, ἐν δορὶ δ'οἶνος
Ἰσμαρικος, πίνω δ'ἐν δορὶ κεκλιμένος.

Na lança minha está o pão amassado, na lança o vinho
Ismariqueu; bebo-o, na lança apoiado. » ;



E não é esta a postura ideal do soldado, senão em hodierna companhia, ao menos em sua formação clássica, no que é considerado seu território de proliferação? Pensemos em Atenas na Batalha de Salamina (A Guerra do Peloponeso, Tucídides não encontra páreo neste evento) ; ou consideremos o exército de mil homens-1 (menos a unidade) do formidável Gêng'is Cã (a transformação de um regime nômade para um grande império estabelecido e já em decadência - para isso, As cidades invisíveis, de Italo Calvino) ; ou então as concentrações armadas e perambulantes de ajuntamentos aztecas, e maias, e tupinambás (basta ler, para os interesses brasileiros, I-Juca-Pirãma, de Gonçalves Dias [1] : « Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. ».)




Como guerreiro samurai, que de existir é lendário - furemos o grande lagarto [2] ! Afiemos nossas consoantes, e façamos da palavra um motivo da penetração ; afundemos a palavra de uma ponta a outra. Mas sejamos capazes de senti-la atravessando-nos, tenhamos a coragem de enfrentar a lança de que dependemos para persistir em tudo ; tenhamos coragem de recebê-la na carne, como Richard Francis Burton [3]. Digamos, de peito aberto : a palavra é minha ponta-de-lança.






notas :




[1]


I




No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos - cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação ;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,

Já meigos atendem à voz do cantor :

São todos Timbiras, guerreiros valentes !

Seu nome lá voa na boca das gentes,

Condão de prodígios, de glória e terror!
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,

O incenso aspiraram dos seus maracás :

Medrosos das guerras que os fortes acendem,

Custosos tributos ignavos lá rendem,

Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro

Da tribo senhora, das tribos servis :

Os velhos sentados praticam d’outrora,

E os moços inquietos, que a festa enamora,

Derramam-se em torno dum índio infeliz.
Quem é ? - ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz : - de um povo remoto

Descende por certo - dum povo gentil ;

Assim lá na Grécia ao escravo insulano

Tornavam distinto do vil muçulmano

As linhas corretas do nobre perfil.
Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras : - no extenso terreiro

Assola-se o teto, que o teve em prisão ;

Convidam-se as tribos dos seus arredores,

Cuidosos se incubem do vaso das cores,

Dos vários aprestos da honrosa função.
Acerva-se a lenha da vasta fogueira
Entesa-se a corda da embira ligeira,

Adorna-se a maça com penas gentis :

A custo, entre as vagas do povo da aldeia

Caminha o Timbira, que a turba rodeia,

Garboso nas plumas de vário matiz.
Em tanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,

índio já querem cativo acabar :

A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,

Brilhante enduape no corpo lhe cingem,

Sombreia-lhe a fronte gentil canitar,

II


Em fundos vasos d’alvacenta argila
       Ferve o cauim ;

Enchem-se as copas, o prazer começa,

       Reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
       Sentado está,

O prisioneiro, que outro sol no ocaso

       Jamais verá !
A dura corda, que lhe enlaça o colo,
       Mostra-lhe o fim

Da vida escura, que será mais breve

       Do que o festim !
Contudo os olhos d’ignóbil pranto
       Secos estão ;

Mudos os lábios não descerram queixas

       Do coração.
Mas um martírio , que encobrir não pode,
       Em rugas faz

A mentirosa placidez do rosto

       Na fronte audaz !
Que tens, guerreiro ? Que temor te assalta
       No passo horrendo ?

Honra das tabas que nascer te viram,

       Folga morrendo.
Folga morrendo ; porque além dos Andes
       Revive o forte,

Que soube ufano contrastar os medos

       Da fria morte.
Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,
       Lá murcha e pende :

Somente ao tronco, que devassa os ares,

       O raio ofende !
Que foi ? Tupã mandou que ele caísse,
       Como viveu ;

E o caçador que o avistou prostrado

       Esmoreceu !
Que temes, ó guerreiro ? Além dos Andes
       Revive o forte,

Que soube ufano contrastar os medos

       Da fria morte.

III


Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,

A quem do sacrifício cabe as honras,

Na fronte o canitar sacode em ondas,

O enduape na cinta se embalança,

Na destra mão sopesa a iverapeme,

Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo

Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra,

Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,

Como que por feitiço não sabido

Encantadas ali as almas grandes

Dos vencidos Tapuias, inda chorem

Serem glória e brasão d’imigos feros.
"Eis-me aqui", diz ao índio prisioneiro ;
"Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,

"As nossas matas devassaste ousado,

"Morrerás morte vil da mão de um forte."
Vem a terreiro o mísero contrário ;
Do colo à cinta a muçurana desce :

"Dize-nos quem és, teus feitos canta,

"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa

O índio, que ao redor derrama os olhos,

Com triste voz que os ânimos comove.

IV


Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi :
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci ;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci ;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte ;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei ;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.
Andei longes terras
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimoréis ;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos !
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.
E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás ;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.
Aos golpes do imigo,
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.
Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi :
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui !
O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu’ria morrer !
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.
Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei :
O cru dessossêgo
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego
Qual seja, - dizei!
Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou :
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.
Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta ? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver !
Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo :
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro :
Se a vida deploro,
Também sei morrer.

V


Soltai-o ! - diz o chefe. Pasma a turba ;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim ; mas cede : o estranho é salvo.
- Timbira, diz o índio enternecido,
Sôlto apenas dos nós que o seguravam :
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
- És livre ; parte.
                          - E voltarei.
                                              - Debalde.
- Sim, voltarei, morto meu pai.
                                              - Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora : és livre ; parte!
- Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
                         - És livre ; parte!
- Ora não partirei ; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.
- Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi : - arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precípite. - Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam :
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia : - Ingrato! Ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio.
Espectro d’homem, penetrou no bosque!

VI


- Filho meu, onde estás
                                    - Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões : tomai-as,
As vossas fôrças restaurai perdidas,
E a caminho, e já!
                                    - Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora! 
- Sim demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei ; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!
                                    - Que novos males
Nos resta de sofrer? - que novas dores,
Que outro fado pior Tupã nos guarda?
- As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.
                                    - Mas tu tremes!
- Talvez do afã da caça....
                                    - Oh filho caro!
Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração ; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei : é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!... -
                     E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tacteando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal ocorreu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo : - foge, volta,
Encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido ;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via ; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha ;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!
- Tu prisioneiro, tu?
                                - Vós o dissestes.
- Dos índios?
                      - Sim.
                                - De que nação?
                                                - Timbiras.
- E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebrastes maça...
- Nada fiz... aqui estou.
                                     - Nada! -
                                                 Emudecem;
Curto instante depois prossegue o velho:
- Tu és valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo! 
- Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia....
- E depois?...
                    - Eis-me aqui.
                                   - Fica essa taba?
- Na direção do sol, quando transmonta.


- Longe?
                    - Não muito.
                                   - Tens razão: partamos.
- E quereis ir?..
                           - Na direção do acaso.

VII


"Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,

Vós, guerreiros, concedestes

A vida a um prisioneiro.

Ação tão nobre vos honra,

Nem tão alta cortesia

Vi eu jamais praticada

Entre os Tupis, - e mais foram

Senhores em gentileza.
"Eu porém nunca vencido,
Nem nos combates por armas,

Nem por nobreza nos atos ;

Aqui venho, e o filho trago.

Vós o dizeis prisioneiro,

Seja assim como dizeis ;

Mandai vir a lenha, o fogo,

A maça do sacrifício

E a muçurana ligeira :

Em tudo o rito se cumpra!

E quando eu for só na terra,

Certo acharei entre os vossos,

Que tão gentis se revelam,

Alguém que meus passos guie ;

Alguém, que vendo o meu peito

Coberto de cicatrizes,

Tomando a vez de meu filho,

De haver-me por pai se ufane!"
Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com tôrvo acento:
- Nada farei do que dizes :
É teu filho imbele e fraco !
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue :
Ele chorou de cobarde ;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. -
Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha !

VIII


"Tu choraste em presença da morte ?
Na presença de estranhos choraste ?
Não descende o cobarde do forte ;
Pois choraste, meu filho não és !
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de via Aimorés.
"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado ;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz !
"Não encontres doçura no dia,
Nem as côres da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar :
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
"Que a teus passos a relva se torre ;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor ;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror !
"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi !
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés !
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."

IX


Isto dizendo, o miserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservada,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. - Alarma ! alarma ! - O velho pára !
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. - Alarma ! alarma ! 
- Esse momento só vale a pagar-lhe
Os tão compridos trances, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.
Êle que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.
A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem,
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.
Era êle, o Tupi; nem fôra justo
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
- Basta! Clama o chefe dos Timbiras,
- Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. -
O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
"Corram livres as lágrimas que choro,
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."

X


Um velho Timbira, coberto de glória,
         Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
         Do que êle contava,
Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!
"Eu vi o brioso no largo terreiro
        Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
        Parece que o vejo,
Que o tenho nest’hora diante de mi.
"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
        Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
        Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"
Assim o Timbira, coberto de glória,
        Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
        Do que ele contava,
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!".

FIM