Sartor Resartus [1834]
Romance de Thomas Carlyle que é uma enorme resenha sobre um livro maior ainda de um filósofo alemão inventado que escreveu uma filosofia das roupas. Sátira fina a uma filosofia especulativa da época, talvez principalmente a Hegel e seus continuadores. Aqui o oitavo capítulo, "O Mundo Sem Roupas":
Se, na porção Descritivo-Histórica desse Volume, Teufelsdröckh,
meramente discutindo o Werden
(Origem e sucessiva Melhoria) das Roupas, impressionou muitos
leitores, muito mais ele fará na porção Especulativo-Filosófica,
que trata da Wirken
delas, ou Influências. Foi primeiro aqui que o Editor sentiu a
pressão de sua tarefa; pois aqui propriamente começa a mais elevada
e nova Filosofia das Roupas: uma região todinha não provada, quase
inconcebível, ou caos; aventurando-se nela, quão difícil, e
todavia quão indizivelmente importante que é saber qual curso, de
investigação e conquista, é o verdadeiro; onde a pisada é
substância firme e irá nos suportar, onde é oco, ou mera névoa,
que pode nos tragar! Teufelsdröckh se lança a nada menos que expôr
as morais, políticas e até religiosas Influências das Roupas; ele
se lança a tornar manifesta, em suas milidobradas acepções, essa
grande Proposição de que os interesses terrenos do Homem “estão
todos enganchados e abotoados juntos, e sustentados, por Roupas”.
Ele diz isso com variadas palavras, “A Sociedade está fundada na
Roupagem”; e de novo, “A Sociedade navega através da Infinitude
de Roupa, como num Manto de Fausto, ou então como no Lençol de
máculas e imáculas bestas no Sonho do Apóstolo; e sem esse Lençol
e esse Manto afundaria em termináveis profundezas, ou se poria em
limbos inanes, e em ambos os casos não seria.”
Por quais correntes ou, de fato,
por quais tecidos infinitamente complexidados de Meditação esse
grande Teorema é aqui desdobrado, e inumeráveis Corolários
práticos são esboçados a partir daí, seria talvez de uma louca
ambição tentar exibi-los. O método do nosso Professor não é, em
todo caso, o da comum Lógica escolar, onde todas as verdades estão
postas em fila, cada uma segurando as franjas da outra; mas, na
melhor das hipóteses, aquele da Razão prática, procedendo por
largas Intuições sobre grupos e reinos sistemáticos inteiros; por
onde, podemos dizer, uma nobre complexidade, quase a da Natureza,
reina em sua Filosofia, ou espiritual Retrato da Natureza: um
poderoso labirinto, e porém, como sussurros de fé, não sem um
plano. Sim, reclamamos acima que certa complexidade ignóbil, que
temos de chamar de confusão, era também discernível. Amiúde,
também, temos de exclamar: Que dos Céus esses mesmos Documentos
Biográficos tenham vindo! Pois parece que a demonstração muito
reside na individualidade do Autor; como se fosse não Argumento o
que o tivesse ensinado, mas Experiência. Presentemente é apenas em
piscadelas locais, e por significantes fragmentos, amiúde catados em
assaz largos intervalos do Volume original, e cuidadosamente
colacionados, que esperamos repartir algum bosquejo ou prenúncio
dessa Doutrina. Leitores de qualquer inteligência estão mais do que
convidados a nos obsequiar com sua mais concentrada atenção: que
eles e elas, após intensa consideração, e só até lá, se
pronunciarem. – Será que na beirada derradeira de nosso real
horizonte não há de lençol nem o vulto de Terra; uma promessa de
novas Ilhas Afortunadas, talvez Américas totalmente indiscobertas,
para tais e tais que tenham velas para navegar avante? – Como
exórdio ao todo, aqui está a seguinte longa citação:
«Aos homens de giro especulativo»,
escreve Teufelsdröckh, «acometem temporadas, meditativas, doces e,
todavia, horríveis horas, quando vos colocais em admiração e medo
aquela questão irrespondível: Quem sou eu;
a coisa capaz de dizer “eu” (das Wesen das sich Ich
nennt)? O mundo, com seu ruidoso
tráfico, se retira à distância; e através dos papéis pendurados,
e das paredes de pedra, e dos tecidos espessamente dobrados do
Comércio e da Polidez, e de todos os integumentos com ou sem vida
(da Sociedade e de um Corpo), junto dos quais senta-se rodeada vossa
Existência, – a vista alcança adentro do vazio Profundo e fica-se
só com o Universo, e silenciosamente se comunga com ele, como uma
misteriosa Presença com outra.
«Quem sou eu; o que é esse eu?
Uma Voz, um Movimento, uma Aparição; – alguma Idéia incorporada,
visualizada na Mente Eterna? Cogito ergo sum.
Ai, pobre Cogitador, isso nos leva a muito pouco. É bem verdade, eu
sou; e anteriormente não era: mas Donde? Como? Aonde? A resposta
reside por aí, escrita em todas as cores e movimentos, proferida em
todos os tons de jubileu e pranto, na milifigurada, milivozeada,
harmoniosa Natureza: mas onde está o olho e ouvido sagazes aos quais
o Apocalipse por Deus escrito concederá significação articulada?
Sentamo-nos como numa Fantasmagoria sem-fronteiras, uma Gruta de
Sonhos; sem-fronteiras porque a mais desfalecida estrela, o mais
remoto século, não reside nem mesmo perto da beira disso: sons e
visões multi-coloridas meneiam em volta de nossos sentidos; mas Ele,
o Indormitante, cuja obra são ambos o Sonho e o Sonhador, não
vemos; exceto em raros momentos semi-acordados, mal suspeitamos. A
Criação, alguém diz, reside diante de nós, como um glorioso
Arco-Íris; mas o Sol que a fez reside atrás de nós, de nós
oculto. Então, nesse Sonho estranho, como nos firmamos em sombras
como se substâncias fossem; e dormimos o mais profundo
imaginando-nos bem acordados! Quais dos seus Sistemas Filosóficos
não passa de um teorema sonhado; um enredado quociente,
confiantemente anunciado, onde divisor e dividendo são ambos
desconhecidos? Todas as suas Guerras nacionais, com seus Recuos de
Moscou, e sanguinárias Revoluções plenas de ódio, que é isto
senão o Sonambulismo de agitados Dorminhocos? Este Sonhar, este
Sonambulismo é o que na Terra chamamos de Vida; onde a maioria vaga,
indubitavelmente, como se soubesse dizer a mão direita da esquerda;
todavia sábios são apenas os que sabem que nada sabem.
«Pena que até agora toda
Metafísica provou ser tão inexpressivamente improdutiva! O segredo
do Ser do Homem continua igual a um segredo de Esfinge: um enigma que
ele não pode desvendar; e nessa ignorância ele padece da morte, do
pior tipo de morte, uma espiritual. O que são seus Axiomas, e
Categorias, e Sistemas, e Aforismas? Palavras, palavras. Elevados
Castelos-no-Ar são sagazmente construídos de Palavras, as Palavras
outrossim bem assentadas em Morteiros-lógicos; onde, no entanto,
Conhecimento algum se alojará. O todo é maior que a
parte: quão excessivamente
verdadeiro! A Natureza abomina o vácuo:
quão excessivamente falso e calunioso! E de novo, Nada
pode agir senão onde está: com
todo meu coração; só que, onde
isso está? Não seja escravo de Palavras: não está o Distante, o
Desfalecido, enquanto o amo, o anseio e o lamento, Aqui, no sentido
genuíno, verdadeiramente como o próprio chão em que me levanto?
Mas esse mesmo onde,
com seu irmão quando,
são desde o início as cores mestras de nossa Gruta do Sonho; ou
então, a Tela (seu urdume e sua trama) onde estão pintados todos os
nossos Sonhos e Visões de Vida. Contudo, uma mais profunda meditação
não ensinou a alguns, de cada clima e idade, que o onde
e o quando,
tão misteriosamente inseparáveis de todos os nossos pensamentos,
são apenas terrestres adesões superficiais ao pensamento; que o
Vidente pode discerni-las de onde se armam lá dos celestiais
Todo-Onde [Everywhere]
e Sempre: não conceberam todas as nações os seus Deuses como
Onipresentes e Eternos; existindo num Aqui universal, um sempilongevo
Agora? Pensai bem, também achareis que o Espaço é apenas um modo
do nosso Sentido humano, e o mesmo com o Tempo: nós
somos – não sabemos o quê; – fagulhas luzentes flutuando no
éter da Deidade!
«De tal modo que este Mundo tão
aparentemente sólido, afinal, fôsse só uma imagem airada, nosso
Mim
a única realidade; e a Natureza, com sua milidobrável produção e
destruição, só o reflexo de nossa Força interiorizada, a
“fantasia do nosso Sonho”; ou aquilo que o Espírito-Terra, no
Fausto, nomeia de vivo
Ornamento visível de Deus: –
“Nas enchentes do Ser, nos
temporais da Ação,
Caminho e trabalho, acima,
abaixo,
Trabalho e teço,
ininfindável moção!
Nascimento e Morte,
Um oceano infinito;
Um apossar-se e dar-se
Do fogo do Viver:
É assim que eu, do bramente
Tear do Tempo, dobro
E teço pra Deus o Ornamento
pelo qual O vedes.”
Dos vinte milhões que já leram e
arengaram esse trovoesco discurso do Erdgeist
[Espírito da Terra], estão ainda aí, entre nós, vinte unidades
que aprenderam o significado disso tudo?
«Foi num humor desses, em que baleado e exausto com tais elevadas
especulações, que pela prima vez me veio a questão das Roupas. Bem
estranho, e é o que me ataca, esse mesmo fato de existirem Alfaiates
e Alfaiatados. O Cavalo que cavalgo tem toda uma própria
sobre-costura: dispa-o de suas cilhas e fraldas e extravagantes
penduricalhos que eu apertei em volta dele, e a nobre criatura é sua
própria costureira e tecedora e fiandeira; mais, ele é seu próprio
sapateiro, joalheiro, chapeleiro; livre ele trota pelos vales, com
uma perene casaca cortesã à-prova-de-chuva em seu corpo; onde calor
e facilidade de ajuste atingiram a perfeição; mais, as gracezas
também foram consideradas, e as franjas e fímbrias, com alegre
variedade de cor, finamente apensas, e sempre no lugar certo, não
são faltantes. Enquanto eu – ó Céus! – me cobri por cima com
tosa morta de ovelha, com casca de vegetais, as entranhas de vermes,
couros de bois ou focas, o feltro de bestas peludas; e ando por aí
feito um Biombo-de-Frangalhos móvel, entulhado de trapos e farrapos
juntados do Açougue da Natureza, onde teriam apodrecido, para em mim
apodrecerem mais lentamente! Dia após dia, devo novamente me cobrir;
dia após dia, a desprezível coberta deve perder um pouco mais da
película de sua espessura; algumas das películas, rasgadas pelo
roçar e pelo usar, precisam ser varridas pra Lixeira, pra dentro do
Monturo de Esterco; até que o todo seja gradualmente varrido pra lá,
e eu, fazedor de pó, Moedo-de-Ratos patenteado, consiga novo
material para destriçar. Ó mais sutil dos brutos! vil! vil demais!
E não tenho também eu uma compacta pele toda fechadinha, por mais
branca e encardida? Sou eu, então, uma massa remendada com trapos de
alfaiate e sapateiro, sarrafaçal; ou uma pequena Figura homogênea,
articulada com firmeza, automática, melhor, viva?
«Bem estranho como essas criaturas
do tipo humano fecham os olhos a fatos evidentes; e pela mera inércia
do Esquecimento e Estupidez, vivem numa boa em meio a Maravilhas e
Terrores. Mas de fato o homem é, e sempre foi, um cabeção e
broncudo; pronto demais para sentir e digerir do que pensar e
ponderar. O Preconceito, que ele finge odiar, é seu legislador
absoluto; o mero uso-e-costume o leva a toda parte pelo nariz; aí
deixe só um Nascer do Sol, deixe uma Criação do Mundo acontecer
pela segunda vez, e
ele pára de ser maravilhoso, de ser digno de reparo e notável.
Talvez nem mesmo uma só vez ocorra ao nosso bípede ordinário, de
qualquer país ou geração, seja ele um Príncipe em ouro amantado
ou um Camponês de gibão acastanhado, que suas Vestimentas e seu Si
não são uma coisa só e indivisível; que ele
está nu, sem vestimentas, até que compre ou roube algumas,
premeditadamente as costurando e abotoando.
«De minha parte, estas considerações sobre nossas
Roupas-cobertas, e como alcançando interiores do âmago de nosso
coração isso nos alfaiata e desmoraliza, encheram-me de um certo
horror por mim e pela humanidade; quase quando como se está de
frente àquelas Vacas Holandesas, que vedes, na estação úmida,
pastando deliberadamente com suas casacas e saiotes (de aniagem
despida), nas pradarias de Gouda. Entretanto, há algo de grandioso
no momento em que um homem pela primeira vez se despe de fortuitos
embrulhos; e de fato vê que está nu e que é, como quer Swift, “um
animal de escanchar forqueado com pernas arqueadas”; mas também um
Espírito, e improferível Mistério dos Mistérios.»
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