sexta-feira, 3 de agosto de 2018

o frio é psicológico, mas é bom pôr uma blusa

Sartor Resartus [1834] 

Romance de Thomas Carlyle que é uma enorme resenha sobre um livro maior ainda de um filósofo alemão inventado que escreveu uma filosofia das roupas. Sátira fina a uma filosofia especulativa da época, talvez principalmente a Hegel e seus continuadores. Aqui o oitavo capítulo, "O Mundo Sem Roupas":


Se, na porção Descritivo-Histórica desse Volume, Teufelsdröckh, meramente discutindo o Werden (Origem e sucessiva Melhoria) das Roupas, impressionou muitos leitores, muito mais ele fará na porção Especulativo-Filosófica, que trata da Wirken delas, ou Influências. Foi primeiro aqui que o Editor sentiu a pressão de sua tarefa; pois aqui propriamente começa a mais elevada e nova Filosofia das Roupas: uma região todinha não provada, quase inconcebível, ou caos; aventurando-se nela, quão difícil, e todavia quão indizivelmente importante que é saber qual curso, de investigação e conquista, é o verdadeiro; onde a pisada é substância firme e irá nos suportar, onde é oco, ou mera névoa, que pode nos tragar! Teufelsdröckh se lança a nada menos que expôr as morais, políticas e até religiosas Influências das Roupas; ele se lança a tornar manifesta, em suas milidobradas acepções, essa grande Proposição de que os interesses terrenos do Homem “estão todos enganchados e abotoados juntos, e sustentados, por Roupas”. Ele diz isso com variadas palavras, “A Sociedade está fundada na Roupagem”; e de novo, “A Sociedade navega através da Infinitude de Roupa, como num Manto de Fausto, ou então como no Lençol de máculas e imáculas bestas no Sonho do Apóstolo; e sem esse Lençol e esse Manto afundaria em termináveis profundezas, ou se poria em limbos inanes, e em ambos os casos não seria.”

Por quais correntes ou, de fato, por quais tecidos infinitamente complexidados de Meditação esse grande Teorema é aqui desdobrado, e inumeráveis Corolários práticos são esboçados a partir daí, seria talvez de uma louca ambição tentar exibi-los. O método do nosso Professor não é, em todo caso, o da comum Lógica escolar, onde todas as verdades estão postas em fila, cada uma segurando as franjas da outra; mas, na melhor das hipóteses, aquele da Razão prática, procedendo por largas Intuições sobre grupos e reinos sistemáticos inteiros; por onde, podemos dizer, uma nobre complexidade, quase a da Natureza, reina em sua Filosofia, ou espiritual Retrato da Natureza: um poderoso labirinto, e porém, como sussurros de fé, não sem um plano. Sim, reclamamos acima que certa complexidade ignóbil, que temos de chamar de confusão, era também discernível. Amiúde, também, temos de exclamar: Que dos Céus esses mesmos Documentos Biográficos tenham vindo! Pois parece que a demonstração muito reside na individualidade do Autor; como se fosse não Argumento o que o tivesse ensinado, mas Experiência. Presentemente é apenas em piscadelas locais, e por significantes fragmentos, amiúde catados em assaz largos intervalos do Volume original, e cuidadosamente colacionados, que esperamos repartir algum bosquejo ou prenúncio dessa Doutrina. Leitores de qualquer inteligência estão mais do que convidados a nos obsequiar com sua mais concentrada atenção: que eles e elas, após intensa consideração, e só até lá, se pronunciarem. – Será que na beirada derradeira de nosso real horizonte não há de lençol nem o vulto de Terra; uma promessa de novas Ilhas Afortunadas, talvez Américas totalmente indiscobertas, para tais e tais que tenham velas para navegar avante? – Como exórdio ao todo, aqui está a seguinte longa citação:

«Aos homens de giro especulativo», escreve Teufelsdröckh, «acometem temporadas, meditativas, doces e, todavia, horríveis horas, quando vos colocais em admiração e medo aquela questão irrespondível: Quem sou eu; a coisa capaz de dizer “eu” (das Wesen das sich Ich nennt)? O mundo, com seu ruidoso tráfico, se retira à distância; e através dos papéis pendurados, e das paredes de pedra, e dos tecidos espessamente dobrados do Comércio e da Polidez, e de todos os integumentos com ou sem vida (da Sociedade e de um Corpo), junto dos quais senta-se rodeada vossa Existência, – a vista alcança adentro do vazio Profundo e fica-se só com o Universo, e silenciosamente se comunga com ele, como uma misteriosa Presença com outra.

«Quem sou eu; o que é esse eu? Uma Voz, um Movimento, uma Aparição; – alguma Idéia incorporada, visualizada na Mente Eterna? Cogito ergo sum. Ai, pobre Cogitador, isso nos leva a muito pouco. É bem verdade, eu sou; e anteriormente não era: mas Donde? Como? Aonde? A resposta reside por aí, escrita em todas as cores e movimentos, proferida em todos os tons de jubileu e pranto, na milifigurada, milivozeada, harmoniosa Natureza: mas onde está o olho e ouvido sagazes aos quais o Apocalipse por Deus escrito concederá significação articulada? Sentamo-nos como numa Fantasmagoria sem-fronteiras, uma Gruta de Sonhos; sem-fronteiras porque a mais desfalecida estrela, o mais remoto século, não reside nem mesmo perto da beira disso: sons e visões multi-coloridas meneiam em volta de nossos sentidos; mas Ele, o Indormitante, cuja obra são ambos o Sonho e o Sonhador, não vemos; exceto em raros momentos semi-acordados, mal suspeitamos. A Criação, alguém diz, reside diante de nós, como um glorioso Arco-Íris; mas o Sol que a fez reside atrás de nós, de nós oculto. Então, nesse Sonho estranho, como nos firmamos em sombras como se substâncias fossem; e dormimos o mais profundo imaginando-nos bem acordados! Quais dos seus Sistemas Filosóficos não passa de um teorema sonhado; um enredado quociente, confiantemente anunciado, onde divisor e dividendo são ambos desconhecidos? Todas as suas Guerras nacionais, com seus Recuos de Moscou, e sanguinárias Revoluções plenas de ódio, que é isto senão o Sonambulismo de agitados Dorminhocos? Este Sonhar, este Sonambulismo é o que na Terra chamamos de Vida; onde a maioria vaga, indubitavelmente, como se soubesse dizer a mão direita da esquerda; todavia sábios são apenas os que sabem que nada sabem.

«Pena que até agora toda Metafísica provou ser tão inexpressivamente improdutiva! O segredo do Ser do Homem continua igual a um segredo de Esfinge: um enigma que ele não pode desvendar; e nessa ignorância ele padece da morte, do pior tipo de morte, uma espiritual. O que são seus Axiomas, e Categorias, e Sistemas, e Aforismas? Palavras, palavras. Elevados Castelos-no-Ar são sagazmente construídos de Palavras, as Palavras outrossim bem assentadas em Morteiros-lógicos; onde, no entanto, Conhecimento algum se alojará. O todo é maior que a parte: quão excessivamente verdadeiro! A Natureza abomina o vácuo: quão excessivamente falso e calunioso! E de novo, Nada pode agir senão onde está: com todo meu coração; só que, onde isso está? Não seja escravo de Palavras: não está o Distante, o Desfalecido, enquanto o amo, o anseio e o lamento, Aqui, no sentido genuíno, verdadeiramente como o próprio chão em que me levanto? Mas esse mesmo onde, com seu irmão quando, são desde o início as cores mestras de nossa Gruta do Sonho; ou então, a Tela (seu urdume e sua trama) onde estão pintados todos os nossos Sonhos e Visões de Vida. Contudo, uma mais profunda meditação não ensinou a alguns, de cada clima e idade, que o onde e o quando, tão misteriosamente inseparáveis de todos os nossos pensamentos, são apenas terrestres adesões superficiais ao pensamento; que o Vidente pode discerni-las de onde se armam lá dos celestiais Todo-Onde [Everywhere] e Sempre: não conceberam todas as nações os seus Deuses como Onipresentes e Eternos; existindo num Aqui universal, um sempilongevo Agora? Pensai bem, também achareis que o Espaço é apenas um modo do nosso Sentido humano, e o mesmo com o Tempo: nós somos – não sabemos o quê; – fagulhas luzentes flutuando no éter da Deidade!

«De tal modo que este Mundo tão aparentemente sólido, afinal, fôsse só uma imagem airada, nosso Mim a única realidade; e a Natureza, com sua milidobrável produção e destruição, só o reflexo de nossa Força interiorizada, a “fantasia do nosso Sonho”; ou aquilo que o Espírito-Terra, no Fausto, nomeia de vivo Ornamento visível de Deus: –

“Nas enchentes do Ser, nos temporais da Ação,
Caminho e trabalho, acima, abaixo,
Trabalho e teço, ininfindável moção!
Nascimento e Morte,
Um oceano infinito;
Um apossar-se e dar-se
Do fogo do Viver:
É assim que eu, do bramente Tear do Tempo, dobro
E teço pra Deus o Ornamento pelo qual O vedes.”

Dos vinte milhões que já leram e arengaram esse trovoesco discurso do Erdgeist [Espírito da Terra], estão ainda aí, entre nós, vinte unidades que aprenderam o significado disso tudo?

«Foi num humor desses, em que baleado e exausto com tais elevadas especulações, que pela prima vez me veio a questão das Roupas. Bem estranho, e é o que me ataca, esse mesmo fato de existirem Alfaiates e Alfaiatados. O Cavalo que cavalgo tem toda uma própria sobre-costura: dispa-o de suas cilhas e fraldas e extravagantes penduricalhos que eu apertei em volta dele, e a nobre criatura é sua própria costureira e tecedora e fiandeira; mais, ele é seu próprio sapateiro, joalheiro, chapeleiro; livre ele trota pelos vales, com uma perene casaca cortesã à-prova-de-chuva em seu corpo; onde calor e facilidade de ajuste atingiram a perfeição; mais, as gracezas também foram consideradas, e as franjas e fímbrias, com alegre variedade de cor, finamente apensas, e sempre no lugar certo, não são faltantes. Enquanto eu – ó Céus! – me cobri por cima com tosa morta de ovelha, com casca de vegetais, as entranhas de vermes, couros de bois ou focas, o feltro de bestas peludas; e ando por aí feito um Biombo-de-Frangalhos móvel, entulhado de trapos e farrapos juntados do Açougue da Natureza, onde teriam apodrecido, para em mim apodrecerem mais lentamente! Dia após dia, devo novamente me cobrir; dia após dia, a desprezível coberta deve perder um pouco mais da película de sua espessura; algumas das películas, rasgadas pelo roçar e pelo usar, precisam ser varridas pra Lixeira, pra dentro do Monturo de Esterco; até que o todo seja gradualmente varrido pra lá, e eu, fazedor de pó, Moedo-de-Ratos patenteado, consiga novo material para destriçar. Ó mais sutil dos brutos! vil! vil demais! E não tenho também eu uma compacta pele toda fechadinha, por mais branca e encardida? Sou eu, então, uma massa remendada com trapos de alfaiate e sapateiro, sarrafaçal; ou uma pequena Figura homogênea, articulada com firmeza, automática, melhor, viva?

«Bem estranho como essas criaturas do tipo humano fecham os olhos a fatos evidentes; e pela mera inércia do Esquecimento e Estupidez, vivem numa boa em meio a Maravilhas e Terrores. Mas de fato o homem é, e sempre foi, um cabeção e broncudo; pronto demais para sentir e digerir do que pensar e ponderar. O Preconceito, que ele finge odiar, é seu legislador absoluto; o mero uso-e-costume o leva a toda parte pelo nariz; aí deixe só um Nascer do Sol, deixe uma Criação do Mundo acontecer pela segunda vez, e ele pára de ser maravilhoso, de ser digno de reparo e notável. Talvez nem mesmo uma só vez ocorra ao nosso bípede ordinário, de qualquer país ou geração, seja ele um Príncipe em ouro amantado ou um Camponês de gibão acastanhado, que suas Vestimentas e seu Si não são uma coisa só e indivisível; que ele está nu, sem vestimentas, até que compre ou roube algumas, premeditadamente as costurando e abotoando.

«De minha parte, estas considerações sobre nossas Roupas-cobertas, e como alcançando interiores do âmago de nosso coração isso nos alfaiata e desmoraliza, encheram-me de um certo horror por mim e pela humanidade; quase quando como se está de frente àquelas Vacas Holandesas, que vedes, na estação úmida, pastando deliberadamente com suas casacas e saiotes (de aniagem despida), nas pradarias de Gouda. Entretanto, há algo de grandioso no momento em que um homem pela primeira vez se despe de fortuitos embrulhos; e de fato vê que está nu e que é, como quer Swift, “um animal de escanchar forqueado com pernas arqueadas”; mas também um Espírito, e improferível Mistério dos Mistérios.»

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Nem Gandhi imaginou

Eis aqui o episódio em que Henry Miller ciceroneia um discípulo de Gandhi por Paris, primo dum amigo, e por um pedido expresso do discíspulo, acompanhando-o pelos cafés de Paris, pelas praças e sobretudo pelas prostitutas. Deve-se observar que os discípulos de Gandhi contraíam voto de celibato. E o que significa para um tal discípulo estar de viagem por Paris porque lá mora um primo, e logo conhecer um tipo como Henry Miller, eu mal consigo imaginar. Mas em certa altura daquela noite, cada um deles acompanhados de uma mulher em quartos diferentes, o indiano aproveita uma deixa e corre a Miller com uma dúvida dilacerante: “Onde faço minhas necessidades? Nunca vi um banheiro assim!” Imagina-se que na Índia do início do séc. XX poucos tinham a ideia de alguns apetrechos, para os ocidentais tão banais, como a privada ou o bidê. Miller diz a ele, com tranquila naturalidade: “Faz no bidê mesmo.” Minutos depois, a prostituta com quem o indiano se entretinha dá nos gritos: “Aaa! ele é um monstro, esse homem é um monstro”, e então Miller desengata novamente:

 «No ar há uma espécie de pandemônio subjugado, uma nota de violência reprimida, como se a explosão aguardada requeresse o advento de algum detalhe inteiramente diminuto, algo microscópico porém absolutamente imprevisível, completamente inesperado. Nessa espécie de semidevaneio que permite com que a gente participe de um acontecimento mantendo-se todavia à distância, o detalhezinho que estava faltando se pôs obscuramente porém insistentemente a coagular, a assumir uma forma aberrante, cristalina, como a neve que acumula no fio das vidraças. E como aqueles padrões de neve, que parecem tão bizarros, tão inteiramente livres e fantásticos em desenho, mas que no entanto são determinados pelas mais rígidas leis, assim também esta sensação que começara a ganhar forma dentro de mim parecia estar sendo obediente a leis inelutáveis. Todo meu ser estava respondendo aos ditados de uma ambiência que nunca antes ele havia experimentado; aquilo que eu chamava de mim mesmo parecia estar se contraindo, condensando, arredando das cediças, costumeiras fronteiras da carne cujo perímetro conhecia apenas as modulações das terminações nervosas.

  «E quanto mais substancial, quanto mais sólido devinha o núcleo de mim, mais delicada e extravagante se mostrava a rente e palpável realidade da qual eu estava sendo espremido. À medida que eu ficava mais e mais metálico, à mesma medida a cena diante de meus olhos ficou inflada. O estado de tensão estava tão finamente desenhado agora que a introdução de uma única partícula forânea, mesmo uma partícula microscópica, como estou dizendo, teria espedaçado tudo. Na fração de um segundo, quiçá, eu experimentei aquela total clareza que ao epilético, dizem, é dado conhecer. Naquele momento perdi completamente a ilusão do tempo e espaço: o mundo desenrolou seu drama simultaneamente ao longo do meridiano que não tem eixo algum. Nesse disparo zastrante de eternidade eu senti que tudo estava justificado, supremamente justificado; senti as guerras dentro de mim que haviam deixado o casco e o destroço; senti os crimes que fervilhavam acá emergindo amanhã em ruidoso alarido; senti a miséria que vai gotejando em guardanapos sujos. No meridiano do tempo não há injustiça; só o que há é a poesia do movimento criando a ilusão da verdade e do drama. Se a gente num momento qualquer dá de cara com o absoluto, aquela grande simpatia que fazem homens como Gautama e Jesus parecerem divinos se enregela; o monstruoso não é que homens tenham criado rosas dessa pilha de esterco, mas que eles, por uma ou outra razão, tenham de querer rosas. Por uma ou outra razão o homem anseia pelo milagre, e para cumpri-lo ele vadeia em meio ao sangue. Ele vai se devassar com idéias, vai reduzir-se a uma sombra se por apenas um segundo de sua vida puder fechar seus olhos pra hediondez da realidade. Tudo é suportado – desgraça, humilhação, pobreza, guerra, crime, ennui – na crença de que algo da noite pro dia ocorrerá, um milagre, que tornará a vida tolerável. E enquanto isso um relógio corre cá dentro e não há mão que possa alcançá-lo e desligá-lo. Enquanto isso tem alguém comendo o pão da vida e bebendo o vinho, uma suja e gorda barata de padre que se esconde beberrão na adega, enquanto lá encima à luz das ruas um anfitrião fantasma toca os lábios e o sangue é descorado como água. E pra fora do infindável tormento e da miséria não desponta nenhum milagre, nem mesmo o vestígio microscópico de um alívio. Só idéias, pálidas, atenuadas idéias que precisam engordar pra serem abatidas; idéias que despontam igual bile, igual as tripas de um porco quando a carcaça é destroçada.
E aí eu penso o milagre que seria se esse milagre que o homem eternamente aguarda calhasse de ser nada mais do que esses dois enormes troços que o fiel discípulo largou no bidet. E se no último momento, quando estiver posta a mesa do banquete e os címbalos se chocarem, houver de aparecer subitamente, e sem nenhum aviso, uma travessa prateada em que até o cego poderia ver que não há nada mais, e nada menos, do que dois enormes toletes de merda. Isso eu acredito que seria mais milagroso que qualquer coisa que o homem ansiou. Ia ser milagroso porque insonhado. Ia ser mais milagroso do que o mais selvagem sonho porque qualquer um poderia imaginar a possibilidade mas ninguém nunca o fez, e provavelmente ninguém nunca o fará de novo.

  «De algum modo a sacada de que nada havia pra se esperançar teve um efeito salutar sobre mim. Por semanas e meses, na verdade por anos, minha vida toda estive contando com que algo acontecesse, algum extrínseco acontecimento que iria alterar minha vida, e agora de chofre, inspirado pela absoluta desesperança que as coisas todas dão, senti-me aliviado, senti como se um grande fardo se tivesse erguido dos meus ombros. Ao pôr-do-sol parti a companhia do jovem Hindu, depois de filar uns francos dele, o suficiente prum quarto. Caminhando rumo a Montparnasse decidi lançar-me à deriva co'a maré, e não dar nem uma ínfima resistência ao destino, não importando em que forma ele se apresentasse. Nada que até então havia acontecido comigo tinha sido suficiente pra me destruir; nada exceto minhas ilusões havia sido destruído. Eu mesmo estava intacto. O mundo estava intacto. Amanhã pode haver uma revolução, uma praga, um terremoto; amanhã pode não ter sobrado uma única alma a quem se voltar por simpatia, por ajuda, por fé. Parecia-me que a grande calamidade já havia se manifestado, que eu não poderia ter estado mais verdadeiramente só do que naquele exato momento. Resolvi na minha mente que eu não me apegaria a nada, que não iria esperar por nada, que doravante viveria como um animal, fera predadora, um bucaneiro, um saqueador. Mesmo que fôsse declarada guerra, e meu lote fôsse estar nela, eu pegaria a baioneta e afundá-la-ia, afundaria até o cabo. E se o estupro estivesse na ordem do dia então estuprar eu iria, mas com uma vingança. Naquele exato momento, no quieto crepúsculo de um novo dia, não estava a terra baqueada com crime e aflição? Houve sequer um simples elemento da natureza humana que tenha sido alterado, vitalmente, fundamentalmente alterado, pela marcha incessante da história? Por aquilo que ele chama de melhor parte da sua natureza, o homem foi traído, isso é tudo. Nos extremos limites do seu ser espiritual o homem se encontra novamente nu como um selvagem. Quando encontra Deus, por assim dizer, ele já foi esburgado: é um esqueleto. A gente tem que se encafurnar de novo na vida a mó de envergar um pouco de carne. A palavra tem que virar carne; a alma tem sede. Seja qual for a migalha que eu estiver fixando, nela vou me atirar e devorar. Se das coisas viver é o sumo, então viverei, mesmo que tiver de devir canibal. Outrora eu vinha tentando salvar meu precioso couro, tentando salvar os poucos pedaços de carne que escondem meus ossos. Isso já deu. Atingi os limites da pertinácia. Minhas costas voltadas pra parede; não posso mais recuar. A se fiar na história estou morto. Se algo existir par além terei que voltar quicando. Achei Deus, mas ele é insuficiente. Só espiritualmente é que estou morto. Fisicamente eu estou é vivo. Moralmente sou livre. O mundo de que parti é um zoológico. O ocaso quebra num mundo novo, um mundo selva em que espíritos mirrados zanzam com presas afiadas. Se eu sou uma hiena é uma faminta e mirrada: avante que eu vou engordar.» 

(Trópico de câncer, New York, Grove Press, pp. 95-99)