quarta-feira, 18 de julho de 2018

Nem Gandhi imaginou

Eis aqui o episódio em que Henry Miller ciceroneia um discípulo de Gandhi por Paris, primo dum amigo, e por um pedido expresso do discíspulo, acompanhando-o pelos cafés de Paris, pelas praças e sobretudo pelas prostitutas. Deve-se observar que os discípulos de Gandhi contraíam voto de celibato. E o que significa para um tal discípulo estar de viagem por Paris porque lá mora um primo, e logo conhecer um tipo como Henry Miller, eu mal consigo imaginar. Mas em certa altura daquela noite, cada um deles acompanhados de uma mulher em quartos diferentes, o indiano aproveita uma deixa e corre a Miller com uma dúvida dilacerante: “Onde faço minhas necessidades? Nunca vi um banheiro assim!” Imagina-se que na Índia do início do séc. XX poucos tinham a ideia de alguns apetrechos, para os ocidentais tão banais, como a privada ou o bidê. Miller diz a ele, com tranquila naturalidade: “Faz no bidê mesmo.” Minutos depois, a prostituta com quem o indiano se entretinha dá nos gritos: “Aaa! ele é um monstro, esse homem é um monstro”, e então Miller desengata novamente:

 «No ar há uma espécie de pandemônio subjugado, uma nota de violência reprimida, como se a explosão aguardada requeresse o advento de algum detalhe inteiramente diminuto, algo microscópico porém absolutamente imprevisível, completamente inesperado. Nessa espécie de semidevaneio que permite com que a gente participe de um acontecimento mantendo-se todavia à distância, o detalhezinho que estava faltando se pôs obscuramente porém insistentemente a coagular, a assumir uma forma aberrante, cristalina, como a neve que acumula no fio das vidraças. E como aqueles padrões de neve, que parecem tão bizarros, tão inteiramente livres e fantásticos em desenho, mas que no entanto são determinados pelas mais rígidas leis, assim também esta sensação que começara a ganhar forma dentro de mim parecia estar sendo obediente a leis inelutáveis. Todo meu ser estava respondendo aos ditados de uma ambiência que nunca antes ele havia experimentado; aquilo que eu chamava de mim mesmo parecia estar se contraindo, condensando, arredando das cediças, costumeiras fronteiras da carne cujo perímetro conhecia apenas as modulações das terminações nervosas.

  «E quanto mais substancial, quanto mais sólido devinha o núcleo de mim, mais delicada e extravagante se mostrava a rente e palpável realidade da qual eu estava sendo espremido. À medida que eu ficava mais e mais metálico, à mesma medida a cena diante de meus olhos ficou inflada. O estado de tensão estava tão finamente desenhado agora que a introdução de uma única partícula forânea, mesmo uma partícula microscópica, como estou dizendo, teria espedaçado tudo. Na fração de um segundo, quiçá, eu experimentei aquela total clareza que ao epilético, dizem, é dado conhecer. Naquele momento perdi completamente a ilusão do tempo e espaço: o mundo desenrolou seu drama simultaneamente ao longo do meridiano que não tem eixo algum. Nesse disparo zastrante de eternidade eu senti que tudo estava justificado, supremamente justificado; senti as guerras dentro de mim que haviam deixado o casco e o destroço; senti os crimes que fervilhavam acá emergindo amanhã em ruidoso alarido; senti a miséria que vai gotejando em guardanapos sujos. No meridiano do tempo não há injustiça; só o que há é a poesia do movimento criando a ilusão da verdade e do drama. Se a gente num momento qualquer dá de cara com o absoluto, aquela grande simpatia que fazem homens como Gautama e Jesus parecerem divinos se enregela; o monstruoso não é que homens tenham criado rosas dessa pilha de esterco, mas que eles, por uma ou outra razão, tenham de querer rosas. Por uma ou outra razão o homem anseia pelo milagre, e para cumpri-lo ele vadeia em meio ao sangue. Ele vai se devassar com idéias, vai reduzir-se a uma sombra se por apenas um segundo de sua vida puder fechar seus olhos pra hediondez da realidade. Tudo é suportado – desgraça, humilhação, pobreza, guerra, crime, ennui – na crença de que algo da noite pro dia ocorrerá, um milagre, que tornará a vida tolerável. E enquanto isso um relógio corre cá dentro e não há mão que possa alcançá-lo e desligá-lo. Enquanto isso tem alguém comendo o pão da vida e bebendo o vinho, uma suja e gorda barata de padre que se esconde beberrão na adega, enquanto lá encima à luz das ruas um anfitrião fantasma toca os lábios e o sangue é descorado como água. E pra fora do infindável tormento e da miséria não desponta nenhum milagre, nem mesmo o vestígio microscópico de um alívio. Só idéias, pálidas, atenuadas idéias que precisam engordar pra serem abatidas; idéias que despontam igual bile, igual as tripas de um porco quando a carcaça é destroçada.
E aí eu penso o milagre que seria se esse milagre que o homem eternamente aguarda calhasse de ser nada mais do que esses dois enormes troços que o fiel discípulo largou no bidet. E se no último momento, quando estiver posta a mesa do banquete e os címbalos se chocarem, houver de aparecer subitamente, e sem nenhum aviso, uma travessa prateada em que até o cego poderia ver que não há nada mais, e nada menos, do que dois enormes toletes de merda. Isso eu acredito que seria mais milagroso que qualquer coisa que o homem ansiou. Ia ser milagroso porque insonhado. Ia ser mais milagroso do que o mais selvagem sonho porque qualquer um poderia imaginar a possibilidade mas ninguém nunca o fez, e provavelmente ninguém nunca o fará de novo.

  «De algum modo a sacada de que nada havia pra se esperançar teve um efeito salutar sobre mim. Por semanas e meses, na verdade por anos, minha vida toda estive contando com que algo acontecesse, algum extrínseco acontecimento que iria alterar minha vida, e agora de chofre, inspirado pela absoluta desesperança que as coisas todas dão, senti-me aliviado, senti como se um grande fardo se tivesse erguido dos meus ombros. Ao pôr-do-sol parti a companhia do jovem Hindu, depois de filar uns francos dele, o suficiente prum quarto. Caminhando rumo a Montparnasse decidi lançar-me à deriva co'a maré, e não dar nem uma ínfima resistência ao destino, não importando em que forma ele se apresentasse. Nada que até então havia acontecido comigo tinha sido suficiente pra me destruir; nada exceto minhas ilusões havia sido destruído. Eu mesmo estava intacto. O mundo estava intacto. Amanhã pode haver uma revolução, uma praga, um terremoto; amanhã pode não ter sobrado uma única alma a quem se voltar por simpatia, por ajuda, por fé. Parecia-me que a grande calamidade já havia se manifestado, que eu não poderia ter estado mais verdadeiramente só do que naquele exato momento. Resolvi na minha mente que eu não me apegaria a nada, que não iria esperar por nada, que doravante viveria como um animal, fera predadora, um bucaneiro, um saqueador. Mesmo que fôsse declarada guerra, e meu lote fôsse estar nela, eu pegaria a baioneta e afundá-la-ia, afundaria até o cabo. E se o estupro estivesse na ordem do dia então estuprar eu iria, mas com uma vingança. Naquele exato momento, no quieto crepúsculo de um novo dia, não estava a terra baqueada com crime e aflição? Houve sequer um simples elemento da natureza humana que tenha sido alterado, vitalmente, fundamentalmente alterado, pela marcha incessante da história? Por aquilo que ele chama de melhor parte da sua natureza, o homem foi traído, isso é tudo. Nos extremos limites do seu ser espiritual o homem se encontra novamente nu como um selvagem. Quando encontra Deus, por assim dizer, ele já foi esburgado: é um esqueleto. A gente tem que se encafurnar de novo na vida a mó de envergar um pouco de carne. A palavra tem que virar carne; a alma tem sede. Seja qual for a migalha que eu estiver fixando, nela vou me atirar e devorar. Se das coisas viver é o sumo, então viverei, mesmo que tiver de devir canibal. Outrora eu vinha tentando salvar meu precioso couro, tentando salvar os poucos pedaços de carne que escondem meus ossos. Isso já deu. Atingi os limites da pertinácia. Minhas costas voltadas pra parede; não posso mais recuar. A se fiar na história estou morto. Se algo existir par além terei que voltar quicando. Achei Deus, mas ele é insuficiente. Só espiritualmente é que estou morto. Fisicamente eu estou é vivo. Moralmente sou livre. O mundo de que parti é um zoológico. O ocaso quebra num mundo novo, um mundo selva em que espíritos mirrados zanzam com presas afiadas. Se eu sou uma hiena é uma faminta e mirrada: avante que eu vou engordar.» 

(Trópico de câncer, New York, Grove Press, pp. 95-99)