Eis aqui o episódio em que Henry Miller ciceroneia um discípulo de Gandhi
por Paris, primo dum amigo, e por um pedido expresso do discíspulo, acompanhando-o pelos cafés de Paris, pelas praças e sobretudo pelas prostitutas. Deve-se
observar que os discípulos de Gandhi contraíam voto de celibato. E o que significa para um tal discípulo estar de viagem por Paris porque lá mora um primo, e logo conhecer um tipo como Henry Miller, eu mal consigo imaginar. Mas
em certa altura daquela noite, cada um deles acompanhados de uma mulher em quartos diferentes, o indiano aproveita uma deixa e corre a Miller com uma
dúvida dilacerante: “Onde faço minhas necessidades? Nunca vi um
banheiro assim!” Imagina-se que na Índia do início do séc. XX
poucos tinham a ideia de alguns apetrechos, para os ocidentais tão
banais, como a privada ou o bidê. Miller diz a ele, com tranquila
naturalidade: “Faz no bidê mesmo.” Minutos depois, a prostituta
com quem o indiano se entretinha dá nos gritos: “Aaa! ele é um
monstro, esse homem é um monstro”, e então Miller desengata novamente:
«No
ar há uma espécie de pandemônio subjugado, uma nota de violência
reprimida, como se a explosão aguardada requeresse o advento de
algum detalhe inteiramente diminuto, algo microscópico porém
absolutamente imprevisível, completamente inesperado. Nessa espécie
de semidevaneio que permite com que a gente participe de um
acontecimento mantendo-se todavia à distância, o detalhezinho que
estava faltando se pôs obscuramente porém insistentemente a
coagular, a assumir uma forma aberrante, cristalina, como a neve que
acumula no fio das vidraças. E como aqueles padrões de neve, que
parecem tão bizarros, tão inteiramente livres e fantásticos em
desenho, mas que no entanto são determinados pelas mais rígidas
leis, assim também esta sensação que começara a ganhar forma
dentro de mim parecia estar sendo obediente a leis inelutáveis. Todo
meu ser estava respondendo aos ditados de uma ambiência que nunca
antes ele havia experimentado; aquilo que eu chamava de mim mesmo
parecia estar se contraindo, condensando, arredando das cediças,
costumeiras fronteiras da carne cujo perímetro conhecia apenas as
modulações das terminações nervosas.
«E quanto mais substancial, quanto mais sólido devinha o núcleo de
mim, mais delicada e extravagante se mostrava a rente e palpável
realidade da qual eu estava sendo espremido. À medida que eu ficava
mais e mais metálico, à mesma medida a cena diante de meus olhos
ficou inflada. O estado de tensão estava tão finamente desenhado
agora que a introdução de uma única partícula forânea, mesmo uma
partícula microscópica, como estou dizendo, teria espedaçado tudo.
Na fração de um segundo, quiçá, eu experimentei aquela total
clareza que ao epilético, dizem, é dado conhecer. Naquele momento
perdi completamente a ilusão do tempo e espaço: o mundo desenrolou
seu drama simultaneamente ao longo do meridiano que não tem eixo
algum. Nesse disparo zastrante de eternidade eu senti que tudo estava
justificado, supremamente justificado; senti as guerras dentro de mim
que haviam deixado o casco e o destroço; senti os crimes que
fervilhavam acá emergindo amanhã em ruidoso alarido; senti a
miséria que vai gotejando em guardanapos sujos. No meridiano do
tempo não há injustiça; só o que há é a poesia do movimento
criando a ilusão da verdade e do drama. Se a gente num momento
qualquer dá de cara com o absoluto, aquela grande simpatia que fazem
homens como Gautama e Jesus parecerem divinos se enregela; o
monstruoso não é que homens tenham criado rosas dessa pilha de
esterco, mas que eles, por uma ou outra razão, tenham de querer
rosas. Por uma ou outra razão o homem anseia pelo milagre, e para
cumpri-lo ele vadeia em meio ao sangue. Ele vai se devassar com
idéias, vai reduzir-se a uma sombra se por apenas um segundo de sua
vida puder fechar seus olhos pra hediondez da realidade. Tudo é
suportado – desgraça, humilhação, pobreza, guerra, crime, ennui
– na crença de que algo da noite pro dia ocorrerá, um milagre,
que tornará a vida tolerável. E enquanto isso um relógio corre cá
dentro e não há mão que possa alcançá-lo e desligá-lo. Enquanto
isso tem alguém comendo o pão da vida e bebendo o vinho, uma suja e
gorda barata de padre que se esconde beberrão na adega, enquanto lá
encima à luz das ruas um anfitrião fantasma toca os lábios e o
sangue é descorado como água. E pra fora do infindável tormento e
da miséria não desponta nenhum milagre, nem mesmo o vestígio
microscópico de um alívio. Só idéias, pálidas, atenuadas idéias
que precisam engordar pra serem abatidas; idéias que despontam igual
bile, igual as tripas de um porco quando a carcaça é destroçada.
E aí eu penso o milagre que seria
se esse milagre que o homem eternamente aguarda calhasse de ser nada
mais do que esses dois enormes troços que o fiel discípulo largou
no bidet. E se no
último momento, quando estiver posta a mesa do banquete e os
címbalos se chocarem, houver de aparecer subitamente, e sem nenhum
aviso, uma travessa prateada em que até o cego poderia ver que não
há nada mais, e nada menos, do que dois enormes toletes de merda.
Isso eu acredito que seria mais milagroso que qualquer coisa que o
homem ansiou. Ia ser milagroso porque insonhado. Ia ser mais
milagroso do que o mais selvagem sonho porque qualquer um
poderia imaginar a possibilidade mas ninguém nunca o fez, e
provavelmente ninguém nunca o fará de novo.
«De algum modo a sacada de que nada
havia pra se esperançar teve um efeito salutar sobre mim. Por
semanas e meses, na verdade por anos, minha vida toda estive contando
com que algo acontecesse, algum extrínseco acontecimento que iria
alterar minha vida, e agora de chofre, inspirado pela absoluta
desesperança que as coisas todas dão, senti-me aliviado, senti como
se um grande fardo se tivesse erguido dos meus ombros. Ao pôr-do-sol
parti a companhia do jovem Hindu, depois de filar uns francos dele, o
suficiente prum quarto. Caminhando rumo a Montparnasse decidi
lançar-me à deriva co'a maré, e não dar nem uma ínfima
resistência ao destino, não importando em que forma ele se
apresentasse. Nada que até então havia acontecido comigo tinha sido
suficiente pra me destruir; nada exceto minhas ilusões havia sido
destruído. Eu mesmo estava intacto. O mundo estava intacto. Amanhã
pode haver uma revolução, uma praga, um terremoto; amanhã pode não
ter sobrado uma única alma a quem se voltar por simpatia, por ajuda,
por fé. Parecia-me que a grande calamidade já havia se manifestado,
que eu não poderia ter estado mais verdadeiramente só do que
naquele exato momento. Resolvi na minha mente que eu não me apegaria
a nada, que não iria esperar por nada, que doravante viveria como um
animal, fera predadora, um bucaneiro, um saqueador. Mesmo que fôsse
declarada guerra, e meu lote fôsse estar nela, eu pegaria a baioneta
e afundá-la-ia, afundaria até o cabo. E se o estupro estivesse na
ordem do dia então estuprar eu iria, mas com uma vingança. Naquele
exato momento, no quieto crepúsculo de um novo dia, não estava a
terra baqueada com crime e aflição? Houve sequer um simples
elemento da natureza humana que tenha sido alterado, vitalmente,
fundamentalmente alterado, pela marcha incessante da história? Por
aquilo que ele chama de melhor parte da sua natureza, o homem foi
traído, isso é tudo. Nos extremos limites do seu ser espiritual o
homem se encontra novamente nu como um selvagem. Quando encontra
Deus, por assim dizer, ele já foi esburgado: é um esqueleto. A
gente tem que se encafurnar de novo na vida a mó de envergar um
pouco de carne. A palavra tem que virar carne; a alma tem sede. Seja
qual for a migalha que eu estiver fixando, nela vou me atirar e
devorar. Se das coisas viver é o sumo, então viverei, mesmo que
tiver de devir canibal. Outrora eu vinha tentando salvar meu precioso
couro, tentando salvar os poucos pedaços de carne que escondem meus
ossos. Isso já deu. Atingi os limites
da pertinácia. Minhas
costas voltadas pra parede; não posso mais recuar. A se fiar na
história estou morto. Se algo existir par além terei que voltar
quicando. Achei Deus, mas ele é insuficiente. Só espiritualmente é
que estou morto. Fisicamente eu estou é vivo. Moralmente sou livre.
O mundo de que parti é um zoológico. O ocaso quebra num mundo novo,
um mundo selva em que espíritos mirrados zanzam com presas afiadas.
Se eu sou uma hiena é uma faminta e mirrada: avante que eu vou
engordar.»
(Trópico de câncer, New York, Grove Press, pp. 95-99)